Declaração de São Paulo
Convocados pelo Partido dos Trabalhadores (PT) nos reunimos em São Paulo, Brasil,
representantes de 48 organizações, partidos e frentes de esquerda da América Latina e
Caribe.
Inédito por sua amplitude e pela participação das mais diversas correntes ideológicas da
esquerda, o encontro reafirmou, na prática, a disposição das forças de esquerda, socialistas e
anti-imperialistas do sub-continente de compartilhar análises e balanços de suas experiências
e da situação mundial. Abrimos assim novos espaços para responder aos grandes objetivos
que se colocam hoje a nossos povos e a nossos ideais de esquerda, socialistas, democráticos,
populares e anti-imperialistas.
No transcurso de um debate intenso, verdadeiramente franco, plural e democrático, tratamos
alguns dos grandes problemas que se nos apresentam. Analizamos a situação do sistema
capitalista mundial e a ofensiva imperialista, coberta de um discurso neoliberal, lançada
contra nossos países e nossos povos. Avaliamos a crise da Europa Oriental e do modelo de
transição ao socialismo ali imposto. Revisamos as estratégias revolucionárias da esquerda
desta parte do planeta e dos objetivos que o quadro internacional coloca. Seguiremos adiante
com estes e outros esforços unitários.
Este Encontro é um primeiro passo de identificação e aproximação dos problemas.
Desenvolveremos um novo Encontro no México, onde continuaremos somando inteligências e
vontades à análise permanente que iniciamos, aprofundaremos o debate e buscaremos
avançar propostas de unidade de ação consensuais na luta anti-imperialista e popular.
Promoveremos também intercâmbios especializados em torno dos problemas econômicos,
políticos, sociais e culturais que enfrenta a esquerda continental.
Constatamos que todas as organizações da esquerda concebemos que a sociedade justa, livre
e soberana e o socialismo só podem surgir e sustentar-se na vontade dos povos, ligados com
suas raízes históricas. Manifestamos, por isso, nossa vontade comum de renovar o
pensamento de esquerda e o socialismo, de reafirmar seu caráter emancipador, corrigir
concepções errôneas, superar toda expressão de burocratismo e toda ausência de uma
verdadeira democracia social e de massas. Para nós, a sociedade livre, soberana e justa à
que aspiramos e o socialismo não podem ser senão a mais autêntica das democracias e a
mais profunda das justiças para os povos. Rechaçamos, por isso mesmo, toda pretensão de
aproveitar a crise da Europa Oriental para incitar a restauração capitalista, anular os ganhos e
direitos sociais ou alimentar ilusões nas inexistentes bondades do liberalismo e o capitalismo.
Sabemos, pela experiência histórica do submetimento aos regimes capitalistas e ao
imperialismo, que as imperiosas carências e os mais graves problemas de nossos povos têm
sua raiz nesse sistema e que não encontraram solução nele, nem nos sistemas de
democracias restringidas, tuteladas e até militarizadas que impõe em muitos de nossos
países. A saída que nossos povos anseiam não pode ser alheia às profundas transformações
impulsionadas pelas massas.
As organizações políticas reunidas em São Paulo encontramos um grande alento para
reafirmar nossas concepções e objetivos socialistas, anti-imperialistas e populares no
surgimento e desenvolvimento de vastas forças sociais, democráticas e populares no
Continente que se enfrentam com as alternativas do imperialismo e o capitalismo neoliberal e
a sua seqüela de sofrimento, miséria, atraso e opressão anti-democrática. Esta realidade
confirma à esquerda e ao socialismo como alternativas necessárias e emergentes.
A análise das políticas pró-imperialistas, neoliberais aplicadas pela maioria dos governos
latino-americanos seus trágicos resultados e a revisão da recente proposta de "integração
americana" formulada pelo Presidente Bush para processar as relações de dominação dos
EUA com América Latina e Caribe, nos reafirmam na convicção de que a nada positivo
chegamos por esse caminho.
A recente proposta do Presidente norte-americano é uma receita já conhecida, mas suavizada
para fazê-la mais enganosa. Implica liquidar o patrimônio nacional através da privatização de
empresas públicas estratégicas e rentáveis a câmbio de um irrisório fundo ao que os EUA
aportariam US$ 100 milhões de dólares. Busca a aplicação permanente das nefastas "políticas
de ajuste" que levaram a níveis sem precedentes à deterioração da qualidade de vida dos
latino-americanos, em troca de uma minúscula e condicionada redução na dívida externa
oficial com o governo imperial. A oferta de reduzir a dívida oficial latino-americana com o
Governo dos Estados Unidos em apenas US$ 7 bilhões não representa nada para uma
América Latina cuja dívida externa total se eleva a mais de US$ 430 bilhões, se incluímos a
dívida com o banco comercial e com os organismos multilaterales. Mais ainda, os US$ 100
milhões de "subsídios" prometidos aos países que façam reformas neoliberais não chegam
nem ao 0,5% dos US$ 25 bilhões que a América Latina transferiu ao exterior só em 1989
como juros, amortizações e remissão de lucros do capital estrangeiro. O plano Bush pretende
abrir completamente nossas economias nacionais à desleal e desigual competência com o
aparato econômico imperialista, submeter-nos completamente a sua hegemonia e destruir
nossas estruturas produtivas, integrando-nos a uma zona de livre comércio, hegemonizada e
organizada pelos interesses norte-americanos, enquanto eles mantêm uma Lei de Comércio
Externo profundamente restritiva.
Assim, estas propostas são alheias aos genuínos interesses de desenvolvimento econômico e
social de nossa região e vão combinadas com a restrição de nossas soberanias nacionais e
com o recorte e tutelagem de nossos direitos democráticos. Elas, na realidade, apontam
impedir uma integração autônoma de nossa América Latina dirigida a satisfazer suas mais
vitais necessidades.
Conhecemos a verdadeira cara do Império. É a que se manifesta no implacável cerco e na
renovada agressão contra Cuba e contra a Revolução Sandinista na Nicarágua, no aberto
intervencionismo e sustento ao militarismo em El Salvador, na invasão e ocupação militar
norte-americana de Panamá, nos projetos e passos já dados de militarizar zonas andinas da
América do Sul com o motivo de lutar contra o "narco-terrorismo".
Por isso, reafirmamos nossa solidariedade com a revolução socialista de Cuba, que defende
firmemente sua soberania e suas conquistas; com a revolução popular sandinista, que resiste
aos intentos de desmontar suas conquistas e reagrupa suas forças; com as forças
democráticas, populares e revolucionárias salvadorenhas, que impulsionam a desmilitarização
e a solução política à guerra; com o povo panamenho – invadido e ocupado pelo imperialismo
norte-americano, cuja imediata retirada exigimos – e com os povos andinos que enfrentam a
pressão militarista do imperialismo.
Mas também definimos aqui, em contraposição com a proposta de integração sob domínio
imperialista, as bases de um novo conceito de unidade e integração continental. Ela passa
pela reafirmação da soberania e auto-determinação da América Latina e de nossas nações,
pela plena recuperação de nossa identidade cultural e histórica e pelo impulso à solidariedade
internacionalista de nossos povos. Ela supõe defender o patrimônio latino-americano, pôr fim
à fuga e exportação de capitais do sub-continente, encarar conjunta e unitariamente o flagelo
da impagável dívida externa e a adoção de políticas econômicas em benefício das maiorias,
capazes de combater a situação de miséria em que vivem milhões de latino-americanos. Ela
exige, finalmente, um compromisso ativo com a vigência dos direitos humanos e com a
democracia e a soberania popular como valores estratégicos, colocando as forças de
esquerda, socialistas e progressistas frente ao desafio de renovar constantemente seu
pensamento e sua ação.
Neste marco, renovamos hoje nossos projetos de esquerda e socialistas, nossos
compromissos são a conquista do pão, a beleza e a alegria, o afã de conquistar a soberania
econômica e política de nossos povos e a primazia de valores sociais, baseados na
solidariedade. Declaramos nossa plena confiança em nossos povos, que mobilizados,
organizados e conscientes forjarão, conquistarão e defenderão um poder que torne real a
justiça, a democracia e a liberdade verdadeiras.
Aprendemos com os erros cometidos, assim como com as vitórias. Armados de um
inegociável compromisso com a verdade e com a causa de nossos povos e nações nos
lançamos à marcha, seguros de que o espaço que agora abrimos será preenchido junto à
demais agrupações da esquerda latino-americana e caribenha com novos esforços de
intercâmbio e de unidade de ação como alicerces de uma América Latina livre, justa e
soberana.
São Paulo, 4 de julho de 1990